Por Antonio Bastos* e Diogo Justino**
Filme conta a história dos promotores que levaram os líderes ditadura militar argentina a julgamento
Argentina, 1985 (Santiago Mitre, 2022) conta a história dos promotores Júlio Strassera (Ricardo Darín) e Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani) que levaram os líderes da última ditadura militar argentina (1976-1983) a julgamento, no denominado “Juicio a las Juntas”. Vencedor do Globo de Ouro, do Prêmio Goya e indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, o filme resgata um acontecimento histórico: a inédita condenação de uma ditadura militar por um tribunal civil, formado por concidadãos da própria nação subjugada e de acordo com suas leis nacionais, em menos de dois anos após a redemocratização.
Como não poderia ser diferente, a obra foi objeto de muitas interpelações na sociedade argentina, com críticas sobre a forma utilizada para contar a história, sobre ausências ou esvaziamentos de personagens importantes e sobre a politização do evento – seria um filme alfonsinista, radical***, peronista, kirchnerista ou antikirchnerista? Ou talvez nada disso. É certo que o filme permite discussões sobre o que contar e como contar, também traz à tona divergências sobre temas complexos e fatos específicos da história argentina, mas tudo dentro de um ponto central de concordância: o Nunca Más. A proposta deste texto é usar a obra para explorar eventos que não aparecem nela, principalmente pensando no contexto histórico mais amplo, naquilo que aconteceu antes e depois de 1985.
É notável o modo como o filme trabalha os elementos do Tribunal, principalmente o espaço dado às vítimas-testemunhas, cujas aparições foram decisivas naquele contexto. O julgamento das Juntas Militares de Governo, que governaram o país depois do Golpe de 1976, foi transmitido pelo rádio e teve longo alcance e impacto na sociedade argentina ao expor massivamente as atrocidades cometidas pelos militares.
No filme, vemos a mãe do promotor Moreno Ocampo, que frequentava a mesma missa que o General Videla (principal líder das Juntas) e o considerava um cidadão de bem, mudar de lado depois de ouvir o relato de uma das vítimas no julgamento. Segundo Ocampo, tal fato realmente aconteceu como narrado no filme. Tratava-se do testemunho de Adriana Calvo de Laborde. Uma personagem fundamental para o caso e emblemática na luta por Memória, Verdade e Justiça na Argentina, que foi presa por pertencer à FAP (Federación Argentina de Psicólogos), confundida com as Fuerzas Armadas Peronistas.
Também é significativo o personagem Zelaya, abordado em um quarto de hotel, onde o promotor Stassera lhe confessa não possuir condições de protegê-lo. Ele nos remete ao caso real de Julio Lopez, sequestrado e desaparecido durante a ditadura, que testemunhou em um dos processos contra os militares. E que depois veio a desaparecer novamente em 2006, em meio ao julgamento de um dos seus algozes, nunca mais tendo sido encontrado.
Em outro interessante trecho, o filme retrata a complexidade do caso de Victor Basterra, detento que foi obrigado a trabalhar falsificando documentos para os militares, e que, por isso, teve acesso à câmera fotográfica e papéis, podendo assim produzir provas que mais tarde ajudariam a reconhecer torturadores e vítimas.
Já a cena do ditador Jorge Videla lendo a Bíblia sugere o conluio entre Igreja e Ditadura. Membros do alto clero deram apoio significativo ao regime e à repressão. Na Argentina são famosos os discursos do General Videla sobre estar numa guerra em defesa dos “valores ocidentais e cristãos” da Nação, e que seus inimigos, os “terroristas”, incluíam até aqueles que espalhavam ideias subversivas.
Por outro lado, há ausências muito sentidas e, apesar de não termos a intenção de fazer uma “crítica de cinema” e entrar na discussão sobre a forma escolhida para contar a história – um thriller judicial com alguns clichês, em um formato já conhecido, mas que ao mesmo tempo funciona para atrair atenção do público – é difícil negar que essa forma termina ocasionando problemas discursivos.
Por exemplo, a trama concebe os promotores enquanto heróis que lutam quase sozinhos contra um grande vilão. Enfrentam dificuldades para formar a equipe, são ameaçados e mesmo assim levam adiante seu trabalho. Em uma cena dentro do banheiro do Tribunal, Ocampo questiona Strassera sobre uma reunião com Bruzzo (um personagem turvo de escalão superior). Ao final de um diálogo truncado Strassera conclui: “estamos sozinhos”. Para muitos uma infâmia. Naquele momento as ruas da Argentina se encontravam inundadas de protestos, frutos de intensa mobilização social. Além disso, o próprio trabalho jurídico foi feito com ajuda de especialistas e do relatório final da CONADEP, uma espécie de Comissão da Verdade.
A Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, CONADEP, presidida pelo escritor Ernesto Sabato, foi criada pelo Presidente Raul Alfonsín em dezembro de 1983, logo depois da redemocratização. Seu relatório final, conhecido como “Nunca Más”, seria peça fundamental no julgamento de 1985.
Os promotores não estavam sozinhos, mas aceitam-se certos exageros em filmes baseados em histórias reais. A ausência dos movimentos nas ruas parece ser o que mais se ressentiu a respeito do filme. Todas as vezes que a obra retrata as ruas é sob a insígnia do medo, da tensão, do suspense, uma verdade parcial. As Madres de Plaza de Mayo aparecem rapidamente duas vezes no filme – no Tribunal e em sua sede – apesar de terem realizado diversos atos de rua, como a famosa Marcha de las Máscaras em abril de 1985 e serem fundamentais nas mobilizações nacionais e internacionais.
Numa das cenas mais marcantes, o promotor Strassera pede às madres presentes no julgamento que retirem seus lenços (pañuelos) da cabeça para evitar manifestações políticas no tribunal. Hebe Bonafini, fundadora das Madres, conta que a utilização do lenço branco começou ainda na década de 70, como uma forma de identificação das madres em meio à multidão das marchas de protesto. E que os lenços usados eram, inicialmente, fraldas dos seus filhos desaparecidos.
Em outro momento as madres são destacadas para afirmar um tom crítico a respeito do trabalho de Strassera durante a ditadura. Tendo atuado como juiz e promotor federal, Strassera teve diversas manifestações que favoreceram o regime militar e decisões que negaram habeas corpus aos presos políticos. Em entrevista recente, seu colega Ocampo afirmou em sua defesa que na época não se sabia ao certo o que acontecia nas prisões clandestinas, que os militares haviam implantado um sistema paralelo, secreto e informal fora do controle dos juízes. Lembrou ainda que houve casos de juízes sequestrados e desaparecidos nas mãos da ditadura.
A trajetória de Strassera dá o tom da dificuldade em contar essa história, a complexidade da conjuntura política e as contradições dos personagens. O que fizeram antes e depois?
Sobre isso é incontornável falar do Presidente Raul Alfonsín (do partido Union Cívica Radical), eleito imediatamente após o fim da ditadura, uma figura central que aparece rapidamente na parte final do filme. Era visto como um político moderado, porém comprometido com a defesa dos direitos humanos e das liberdades democráticas. Já durante a campanha eleitoral, defendeu a revogação da Lei de Autoanistia, que seria rapidamente declarada nula e inconstitucional pelo Congresso Argentino em projeto enviado pelo Presidente.
Nos primeiros dias de seu mandato, Alfonsín, que como Presidente da Nação era também chefe do Ministério Público argentino, editou o Decreto 158/83, determinando a abertura de processos penais contra nove membros das três primeiras Juntas Militares de Governo, iniciando o Juicio a las Juntas. Ao mesmo tempo, editou o Decreto 157/83, determinando a abertura de processos também contra dirigentes de grupos guerrilheiros por ações subversivas no período posterior a 1973, o que incluía, portanto, fatos ocorridos anteriormente ao Golpe de 1976.
Tal medida foi vista como adesão à “Teoria dos Dois Demônios”, que buscava equiparar os atos de violência e terrorismo de Estado praticados pelas forças armadas argentinas com os atos de violência dos grupos guerrilheiros da década de 70, como os Montoneros.
De fato, o discurso televisivo de seu Ministro do Interior, Antonio Tróccoli, que aparece logo no início do filme, bem como o prefácio do relatório da CONADEP, são condescendentes com essa visão da história.
Em contrapartida, o adversário de Alfonsín nas eleições de 1983, o peronista Ítalo Luder, tinha um discurso a favor da manutenção da Lei Autoanistia imposta pelos militares em um dos últimos atos da ditadura. Luder foi interpelado no julgamento de 1985 (aparece no filme como a primeira testemunha) sobre sua atuação na política de “aniquilamento” de elementos subversivos ainda no governo da Presidenta Isabelita Perón, viúva e sucessora de Juan Domingo Perón, falecido em 1974 no exercício da presidência. A chapa Perón-Perón havia vencido as eleições em 1973 e foi destituída em 1976 com o golpe militar.
Então, mesmo antes do Golpe de 1976, já havia na Argentina uma crise política permanente e uma prática de terrorismo de Estado (lá chamado de “guerra suja” pelos próprios militares) contra dissidentes políticos e sindicalistas ligados à esquerda, protagonizado tanto por forças policiais e militares quanto por esquadrões da morte organizados pela extrema direita.
Essa difícil conjuntura, somada à tensão social existente e à pressão dos setores militares, mostra a dificuldade e a importância da realização do julgamento e da condenação dos principais líderes da ditadura. Uma demonstração de força e coragem daquela nova democracia que surgia. No entanto, a história reservava, ainda, alguns percalços.
Após a condenação dos ditadores (cujo ponto alto no filme foi a emocionante cena da acusação lida por Strassera e aplaudida pelo público), todos eles viriam a ser indultados e soltos entre 1989 e 1990 durante o governo de Carlos Menem. Soma-se a isso as leis de Ponto Final (1986) e Obediência Devida (1987), promulgadas ainda no período de Alfonsín, que aparecem no final do filme como as “leis de impunidade”. A Lei de Ponto Final estipulava um prazo prescricional para o prosseguimento de ações criminais enquanto a Lei de Obediência Devida conferiu presunção benéfica aos militares com patentes abaixo de coronel.
Foi um período histórico intenso, com muitas mobilizações sociais das organizações de direitos humanos, mas também dos militares golpistas, como as sublevações carapintadas ocorridas entre 1987 e 1990. Conjuntura que certamente influenciou nas idas e vindas da política em relação aos julgamentos. Entidades como as comissões de familiares de desaparecidos, que se articularam em uma federação latino-americana englobando até mesmo organizações brasileiras, como o Grupo Tortura Nunca Mais, pouco aparecem em Argentina, 1985. Mas foi a força desta sociedade civil que manteve viva a demanda pela revisão das Leyes de Impunidad e a consequente reabertura dos processos judiciais. Inicialmente com ações em cortes internacionais, depois com os Juicios por la Verdad, processos que tinham como objetivo a produção de provas e descoberta da verdade, uma vez que as condenações criminais não estavam permitidas.
A pressão social resultou na anulação das leis de impunidade em 2003, em medida aprovada pelo Congresso e assinada pelo Presidente Nestor Kirchner (um peronista progressista), que classificou a anulação como de máxima prioridade. Por sua vez, os indultos de Menem (um peronista neoliberal) foram considerados inconstitucionais pelo Poder Judiciário. A partir de então centenas de processos criminais foram abertos na Justiça Comum, dessa vez não apenas em face dos líderes da ditadura, mas de milhares de agentes públicos, inclusive não-militares.
Os processos criminais que continuam ocorrendo neste exato momento na Argentina são muito diferentes daquele realizado em 1985. Uma das principais diferenças é a participação das organizações de direitos humanos e representantes dos familiares e sobreviventes, a partir da formação das chamadas Querellas, que funcionam com capacidade de acusação ao lado do Ministério Público, muitas vezes divergindo deste em relação aos acontecimentos e requerimentos.
As ações são julgadas pela Justiça Federal de cada região (com processo já abertos em todas as províncias do país), respeitando-se os princípios do Juiz e Promotor natural e seguindo a legislação da época dos fatos. Outro detalhe importante diz respeito à unificação das causas de acordo com o centro clandestino de detenção e tortura ou pelo circuito repressivo (diversos centros clandestinos que funcionavam de forma estruturada), com a criação das chamadas mega causas. Atualmente conta-se não menos que 200 sentenças e mais de 1.300 pessoas condenadas.
A decisão de filmar o Juicio a las Juntas é admirável – trata-se de um evento paradigmático cujos efeitos seguem reverberando. Porém, aquele julgamento não representa totalmente os usos do direito e dos processos criminais que vêm ocorrendo na Argentina nos últimos anos. Uma história que ainda está sendo escrita e que, no futuro, talvez possa caber em uma outra película. Considerando a tradição argentina de rememorar no cinema seu passado recente com sucesso, como em “A História Oficial” (1985) e “O Segredo dos Seus Olhos” (2009), ambos ganhadores do Oscar.
Além de seus demais méritos, Argentina, 1985 contribui para que este debate aconteça, chegue ao grande público e aos países estrangeiros. Torna popular algo que vinha sendo esquecido – o negacionismo da ditadura se faz presente hoje também na Argentina, assim como no Brasil – e nos ajuda nesse caminho difícil de consolidação da democracia. Uma tarefa permanente que nos obriga a, de tempos em tempos, contar a uns e relembrar a outros como e porque uma mulher grávida foi vendada, algemada e torturada dando à luz a sua filha em um carro da polícia.
* Antonio Bastos é advogado e assessor parlamentar na Câmara dos Deputados.
** Diogo Justino é pesquisador do Centro de Estudios sobre Genocidio (Argentina), com bolsa de pós-doutorado CONICET. Doutor em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ). Membro do IPDMS (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais.
*** O radicalismo é uma das principais forças políticas da Argentina dos últimos 100 anos, representado sobretudo pelo partido Union Cívica Radical (UCR). Este movimento foi por muito tempo o principal opositor do peronismo, transitando ao longo da histórica por diversos campos do espectro político. Atualmente se encontra mais marcadamente na centro-direita e tem apoiado os blocos ao redor do macrismo (Direita Liberal).
**** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.